Complexidade
fonológica e reconhecimento da relação morfológica entre as palavras: um estudo
exploratório
Phonological
complexity and the recognition of morphological relationships between words: an
exploratory study
Complejidad
fonológica y reconocimiento de la relación morfológica entre las palabras: un
estudio exploratorio
Márcia Elia da
Mota *
Universidade
Federal de Juiz de Fora
Endereço para correspondência
RESUMO
Estudos sobre o
desenvolvimento da consciência morfológica em crianças têm apresentado
resultados que mostram que a estrutura fonológica das palavras parece ser um
fator que influência o processamento morfológico das palavras. A relação
morfêmica entre palavras derivadas ou flexionadas que mantém a transparência
fonológica das palavras é mais facilmente percebida pelas crianças do que quando
há mudanças na estrutura fonológica. Este estudo apresenta dados de 51 crianças
de primeira e segunda série do Ensino Fundamental que corroboram a idéia de que
a estrutura fonológica das palavras ajuda no reconhecimento da relação morfêmica
entre elas. Uma possível explicação discutida para explicar esse fenômeno diz
respeito ao modo de armazenamento desses morfemas no nosso léxico.
Palavras-chave: Morfologia,
Linguagem, Consciência morfológica.
ABSTRACT
Studies about the
development of morphological awareness in children have presented results that
show that the phonological structure of the words seems to be a factor that
influences the morphological processing of the words. The morphemic
relationships of derived and inflected words that keep the phonological
transparency of the words is more easily perceived by children then when there
is phonological change. This study presents data on 51 subjects form first and
second grade that support the idea that the phonological structure of words help
children to understand the morphemic relationship between them. A possible
explanation for this phenomenon may be related to the way morphemes are storage
in our lexicon.
Keywords:
Morphology, Language, Morphological awareness.
RESUMEN
Estudios sobre el
desarrollo de la consciencia morfológica en niños han presentado resultados que
muestran que la estructura fonológica de las palabras parece ser un factor que
tiene influencia sobre el procesamiento morfológico de las palabras. La relación
morfémica entre palabras derivadas o flexionadas que mantiene la transparencia
fonológica de las palabras es más fácilmente percibida por los niños cuando
comparado a cuando hay cambios en la estructura fonológica. Este estudio
presenta datos de 51 niños de primero y segundo grado de la enseñanza primaria
que confirman la idea de que la estructura fonológica de las palabras ayuda en
el reconocimiento de la relación morfémica entre ellas. Una posible explicación
discutida para explicar ese fenómeno se refiere al modo de almacenamiento de
esos morfemas en nuestro léxico.
Palabras
clave: Morfología, Lenguaje, Consciencia morfológica.
Introdução
A escrita combina
dois princípios: o princípio fo-nográfico e o princípio semiográfico. O
princípio fonográfico está relacionado a como as letras correspondem aos fonemas
das palavras, e princípio semiográfico a como as palavras são constituídas a
partir dos morfemas (Marec-Breton & Gombert, 2004).
Habilidade
metalingüística é a habilidade de refletir sobre a língua como objeto do
pensamento. Entre as habilidades metalingüísticas duas estão associadas aos
princípios anteriormente descritos. A consciência fonológica (habilidade de
refletir sobre os sons da fala) estaria associada à aquisição do princípio
fonográfico, e a consciência morfológica (habilidade de refletir sobre a
estrutura morfológica das palavras), à aquisição do princípio
semiográfico.
Nas últimas duas
décadas o estudo do processamento morfológico tem se constituído como uma área
fértil de investigação, tanto para cientistas interessados na aquisição da
linguagem oral quanto para cientistas interessados na linguagem escrita. No caso
particular da língua escrita Mann (2000) aponta duas razões pela qual o
processamento morfológico seria importante: a primeira diz respeito ao fato de
que a escrita pode ser analisada em vários níveis. Um deles é o nível
semiográfico, que como vimos envolve estabelecer como os grafemas representam
significados das palavras (Marec-Breton & Gombert, 2004); a segunda razão
seria mais específica à natureza da ortografia sendo estudada.
A argumentação
principal para explicar a relação encontrada entre o processamento morfológico e
a alfabetização vem de pesquisas realizadas em falantes do inglês, língua nativa
de Mann. O inglês é uma língua alfabética, o princípio alfabético, também
chamado por Marec-Breton e Gombert (2004) de princípio fonográfico, é o de que
letras devem corresponder perfeitamente aos sons das palavras. No entanto, nem
sempre ortografia das línguas alfabéticas obedece a esse princípio, e variam
quanto ao grau de correspondência entre as letras e os sons da fala. Algumas
ortografias são mais opacas, muitas palavras não obedecem às regras de
correspondência entre letra e som. Outras são mais transparentes, as letras
correspondem mais perfeitamente aos fonemas das palavras.
No inglês essas
relações são mais opacas do que em ortografias como o finlandês, o português ou
o espanhol. Muitas das irregularidades encontradas no inglês podem ser
explicadas pela estrutura morfológica das palavras (Chomsky & Halle, 1968;
Sterling, 1992). Por exemplo, no inglês a palavra heal que rima com
il e a palavra health que rima com elf têm a mesma origem
semântica por isso são escritas da mesma forma, embora sejam pronunciadas de
forma diferente.
Nas línguas com
ortografias mais regulares, o processamento morfológico pode não contribuir de
forma significativa para aquisição e processamento da língua escrita, porque a
maioria das palavras pode ser escrita aplicando-se o princípio alfabético. Mann
(2000) supõe que as línguas alfabéticas mais regulares podem ser mais
dependentes da estrutura fonológica das palavras do que da estrutura
morfológica. Lehtonen e Bryant (2005) ressaltam que embora este seja um
argumento válido, a hipótese de que a consciência morfológica contribui para
alfabetização nestas ortografias regulares também é pertinente. Os autores
argumentam que esta é uma questão teórica que precisa ser mais bem investigada.
A importância da
consciência morfológica na aquisição da língua escrita no inglês tem sido bem
demonstrada. Em uma série de estudos que visavam explorar a relação entre a
consciência morfológica e a alfabetização, Joanne Carlisle mostrou que a
habilidade de refletir sobre os morfemas das palavras estava associada ao
desempenho na leitura de palavras isoladas e a compreensão de leitura (Carlisle,
1995, 2000; Carlisle & Fleming, 2003), e também ao desempenho da escrita
(Carlisle, 1988; 1996).
O problema com os
estudos de Carlisle é que a consciência fonológica não foi controlada. Já
discutimos que a escrita combina dois tipos de princípio: o fonográfico e o
semiográfico. Alguns autores argumentam que a consciência morfológica não
contribui de forma independente para alfabetização (Fowler & Liberman, 1995;
Bowey, 2005) e é um subproduto do processamento fonológico. A consciência
morfológica, bem como a consciência fonológica, faz parte de uma habilidade
metalingüística mais geral. As correlações encontradas entre a consciência
morfológica e a escrita poderiam ser explicadas como parte da variância
partilhada com a consciência fonológica.
Deacon e Kirby
(2004) e Nagy, Berninger e Abbot (2006) investigaram a contribuição da
consciência fonológica e morfológica para escrita e leitura. Esses autores
acharam contribuições mais fortes da consciência fonológica para a língua
escrita do que a da consciência morfológica. Porém, acharam também uma
contribuição independente da consciência morfológica para língua escrita. Isto
é, embora a consciência fonológica tenha contribuído com uma parcela maior da
variância para a leitura e escrita, mesmo depois de controlarmos essa variância,
a consciência morfológica continua contribuindo de forma significativa e
positiva para leitura e escrita.
Embora esses
estudos demonstrem a consciência morfológica contribui para língua escrita de
forma independente, outros estudos demonstram que quando se trata do
processamento dos morfemas, a estrutura fonológica da palavra tem um papel
importante no reconhecimento desses. Para entendermos melhor essa questão é
necessário conhecermos o que são morfemas e como as os crianças processam. Este
assunto será tratado a seguir.
O que são
morfemas? Como as crianças processam os morfemas?
Morfemas são as
menores unidades lingüísticas que tem significado próprio. Existem duas grandes
classes de morfemas: as raízes e os afixos. A raiz pode ser definida como núcleo
mínimo de uma construção morfológica. Os afixos podem ser de dois tipos:
prefixos, afixos adicionados antes da raiz, ou sufixos, afixos adicionados
depois da raiz. Assim, a palavra "enraizamento" tem três morfemas "en", "raiz"
"mento". Os morfemas também podem ser classificados como flexões ou derivações.
As flexões são sufixos que determinam o gênero e o número nos substantivos e
adjetivo, e nos verbos constituem os sufixos temáticos, modo-temporais e
número-pessoais (Laroca, 2005).
As derivações, por
sua vez, podem ser prefixos (ex., "refazer") ou sufixos (ex.,
"leiteiro"). As flexões têm um caráter morfossintático e possuem uma
estabilidade semântica, ao passo que as derivações tratam da estrutura das
palavras, nesse caso pode haver extensões do sentido destas palavras (Laroca,
2005).
Pesquisas têm
demonstrado que as crianças reagem de forma diferente à morfologia derivacional
e a flexional (Deacon & Bryant, 2005). Deacon e Bryant deram a crianças de
cinco a oito anos de idade um teste de escrita, no qual as crianças tinham que
escrever palavras com um morfema e palavras com dois morfemas. Metade das
palavras de dois morfemas era de palavras derivadas e a outra metade eram
palavras flexionadas. As palavras tinham o mesmo som final, por exemplo, a
palavra notion (com um morfema) e a palavra connection (com dois
morfemas). Os autores predisseram que se as crianças processam a morfologia da
língua, elas teriam uma facilidade maior em escrever o som final das palavras
quando eles eram morfemas, do que quando não eram. Na medida em que o som final
das palavras era o mesmo, qualquer diferença nos resultados só poderia ser
atribuída ao processamento morfológico da palavra.
Os resultados deste
estudo mostraram que as crianças escreviam mais corretamente os sons finais das
palavras quando eram morfemas do que quando não eram, mas a análise do tipo de
morfema escrito mostrou que este resultado era verdadeiro apenas para as
flexões.
Os autores
concluíram que a diferença encontrada na escrita dos dois tipos de morfemas
possivelmente ocorria porque na morfologia derivacional há uma mudança na classe
gramatical das palavras morfologicamente complexas, o que não ocorre com a
morfologia flexional. Assim, seria mais fácil para as crianças entender as
relações morfêmicas nas flexões do que nas derivações.
No caso da
morfologia derivacional não há regras claras de como formar as palavras. No
entanto, conhecer a relação entre a raiz e a palavra derivada pode ajudar o
leitor a compreender o significado da palavra e saber como pronunciá-la, e ao
escritor decidir sobre grafias ambíguas. Desta forma, a palavra "laranjeira" é
escrita com "j" e não "g" porque vem da palavra "laranja", informação que o
escritor pode utilizar. O leitor pode se beneficiar também, pois pode inferir
que a palavra significa a "árvore que dá a laranja" (Luft, 1999).
Casalis e
Louis-Alexander (2000) e Deacon e Braynt, (2005) consideram a distinção entre
morfemas derivacionais e flexionais importante porque nas derivações as palavras
muitas vezes mudam de classe gramatical. Por exemplo, a palavra "magro", que é
um adjetivo, se torna "magreza" que é um substantivo abstrato. No caso das
flexões, as palavras não mudam de classe gramatical. Além disso, há regras de
formação de palavras flexionadas, o que nem sempre acontece com as derivações.
Por fim, um mesmo morfema pode ter significado ligeiramente diferente dependendo
da palavra que se encontra. Por exemplo, o "eiro" em "açucareiro" e em
"leiteiro". Em "açucareiro" o "eiro" é usado para indicar o lugar em que se
guarda o açúcar, em "leiteiro" forma uma palavra que indica
profissão.
Em conclusão, o
desenvolvimento do processamento da morfologia derivacional pode ser diferente
do desenvolvimento do processamento da morfologia flexional. De fato, estudos
que exploram a relação entre a consciência morfológica e a escrita sugerem que a
consciência morfológica não é um conceito unitário. Diferentes morfemas podem
ser processados de diferentes formas pelas crianças. Além da distinção entre
morfologia derivacional e flexional, uma outra característica dos morfemas que
pode afetar o resultado de estudos que investigam o processamento morfológico
diz respeito à relação fonológica entre os morfemas. Alguns morfemas têm
relações fonologicamente transparentes "feliz" e "felizmente", e outros têm
relações fonologicamente opacas "razão" e "racional". Pesquisas que observaram a
relação entre o processamento de morfemas que tem relações fonológicas opacas e
transparentes mostram que neste caso também as crianças reagem de forma
diferente ao tipo de morfema.
Fowler e Liberman
(1995) demonstraram que tarefas que envolvem a relação opaca entre os morfemas
correlacionam mais fortemente com a leitura do que aqueles com relações
transparentes. Porém, as crianças acharam mais fácil julgar a relação morfêmica
entre as palavras quando essa relação não modificava a raiz das palavras. Uma
possível explicação para esse resultado é a de que julgamentos de relações
opacas requerem um conhecimento maior da relação morfêmica entre as palavras.
Esse conhecimento mais profundo da morfologia da língua atua facilitando a
leitura. O julgamento de palavras que mantém a raiz preservada pode ter sido
feito com base na semelhança fonológica entre as palavras.
Carlisle, Stone e
Katz (2001) deram a crianças de dez a quinze anos de idade duas tarefas de
leitura que envolviam dois grupos de palavras derivadas. O primeiro grupo eram
palavras derivadas nas quais não havia mudanças na pronuncia da palavra base e
da palavra derivada (cultural e culture), o segundo grupo envolvia
palavras nas quais havia diferenças na pronuncia (natural e
nature). Os pares de palavras eram comparáveis quanto: à freqüência de
ocorrência, número de letras e ao padrão ortográficos. Dessa forma, os autores
argumentam que qualquer diferença na leitura destes dois grupos de palavras só
poderia ser atribuída ao processamento morfológico. As palavras que não tem
mudanças fonológicas na leitura seriam mais fáceis de reconhecer, pois a relação
entre a base da palavra e a palavra morfologicamente complexa é direta, sem
transformação. No caso das palavras em que há mudanças na pronúncia, só conhecer
a base não garante a pronúncia correta, a criança precisa entender que tipo de
mudança fonológica ocorreu.
As crianças, no
estudo de Carlisle, Stone e Katz (2001), foram divididas em dois grupos: bons e
maus leitores. Os resultados mostraram como esperado, que as palavras sem
alteração fonológica foram mais fáceis de ler e reconhecer do que as palavras
com mudanças. No entanto, a diferença entre a leitura dos dois grupos de
palavras foi mais marcada para os maus leitores.
Carlisle e col.
(2001) concluíram que a dificuldade dos maus leitores em ler as palavras com
mudanças fonológicas está relacionada a uma dificuldade no processamento
fonológico complexo das palavras formadas por mais de um morfema. Essa
complexidade morfológica mascara a relação morfêmica entre as palavras. Assim,
os autores sugerem que parte dessa dificuldade está no entendimento das relações
morfológicas entre as palavras. Tornando explícitas as relações entre a raiz e
seus derivados, e as mudanças que certos derivados sofrem, pode ajudar as
crianças a mais rapidamente decidir a pronuncia correta das palavras e fazer
decisões a respeito da grafia destas palavras também.
Uma possível
explicação, para os resultados de estudos que mostram que há diferenças no
processamento de palavras com relações morfológicas opacas e transparentes, é a
de que os morfemas são armazenados como unidades independentes, e são acoplados
quando do processamento da palavra. Por exemplo, "livro" + "s" = "livros". Nesse
caso, as palavras em que não há alteração da base são mais facilmente
reconhecidas. De fato, estudos investigando a língua escrita mostram que os
morfemas que correspondem a letras são omitidos com mais freqüência do que a
mesma seqüência de letras em palavras monomorfêmicas. Em um estudo investigando
os erros de escrita que ocorreram em redações de crianças de 12 anos de idade,
Smith (1980) demonstrou que as crianças tendiam a omitir mais facilmente os
morfemas quando do que uma letra igual que era parte da palavra. Por exemplo, o
"s" em books era omitido com mais freqüência do que o "s" em bus.
Resultados semelhantes foram encontrados no português por Mota, Moussatché,
Castro, Moura e Ribeiro (2000).
Se os morfemas são
armazenados como unidades independentes, então palavras morfologicamente
complexas, que não alteram a raiz, serão mais facilmente reconhecidas do que
palavras que alteram a raiz quando flexionadas ou derivadas. Para explorar essa
hipótese os dados de uma tarefa criada por Besse, Vidigal de Paula e Gombert (em
comunicação particular, 2005) aplicada em um estudo realizado por Mota, Annibal
e Lima (2006) foram reanalisados considerando as diferenças na estrutura
fonológica das palavras. Nessa tarefa as crianças tinham que decidir se uma
entre duas palavras tinha sido formada da mesma maneira que uma palavra alvo.
Por exemplo, "descolorir" é formada da mesma forma que "deslizar" ou "destorcer"
ou "chaveiro" é formada da mesma maneira que "cinzeiro" ou "pandeiro". Metade
das palavras era prefixada e a outra metade era sufixada. Nos prefixos os
morfemas são acoplados nas palavras sem alterar a raiz, nos sufixos utilizados
houve alteração da raiz das palavras. Assim, se os morfemas são armazenados como
unidades independentes das palavras, eles serão mais facilmente reconhecidos nos
prefixos do que nos sufixos.
Método
Participantes
A amostra do estudo
foi constituída por 51 crianças, sendo 27 alunas da 1ª série e 24 da 2ª série,
ambas do ensino fundamental de uma escola pública, situada na região urbana de
Juiz de Fora. A média de idade das crianças de 1ª série foi de 91,1 meses
(dp=4.8) e a da segunda série 103,9 meses (dp=5,53). A participação no estudo
dependeu da autorização do responsável através do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.
Instrumentos
Tarefas de
consciência morfológica
A) Tarefa de
Decisão Morfo-semântica (Besse, Vidigal de Paula & Gombert, em comunicação
pessoal, 2005).
Nesta tarefa a
criança tinha que decidir se uma palavra era construída da mesma forma que as
outras. A explicação dada à criança era a seguinte: "Em português há palavras
que são da mesma família, como, por exemplo, 'descobrir' e 'cobrir', ou seja,
'descobrir' vem de 'cobrir'. Acrescenta-se uma pequena coisa no início para
fazer uma outra palavra. Outro exemplo é o caso de 'desfazer' e 'fazer', em que
se acrescenta o 'des' no início de 'fazer'. Porém, há palavras que também se
iniciam por 'des', mas não vem de outra palavra como é o caso de 'deslizar' que
não vem de 'lizar'''. Após a explicação fazia-se um exemplo com a criança: "Qual
a palavrinha que é feita da mesma maneira que 'descobrir' é 'deslizar' ou
'desfazer?'". Havendo a criança respondido corretamente, iniciava-se a tarefa;
do contrário, dava-se a forma correta explicando a razão.
A lista de palavras
consistia de 12 grupos de três palavras envolvendo prefixos e 12 grupos de
palavra envolvendo sufixos (Anexo A).
Procedimento
As crianças foram
avaliadas individualmente em três sessões de 20 a 30 minutos. Na primeira foram
realizados os testes de consciência morfológica e os testes de consciência
fonológica. Os testes foram aplicados oralmente por duas experimentadoras
treinadas. Na segunda sessão foram aplicados testes de avaliação cognitiva e de
desempenho escolar. Esses testes, por serem padronizados, foram aplicados de
acordo com as normas estabelecidas em seus manuais.
Resultados
Com base nos
objetivos propostos foi realizada uma análise comparativa da performance das
crianças na tarefa de decisão morfológica foi feita. O número de julgamentos
realizados corretamente para os prefixos e para os sufixos foi computado. A
tabela 1 mostra a porcentagem, média e desvio-padrão de acertos na
tarefa.
De um modo geral as
crianças acharam mais fácil julgar os pares de palavras prefixadas do que
sufixadas. O Nível de acerto foi 54% para primeira série (M = 6,5; dp=1,5), e
58% para segunda série para os prefixos (M=7,0; dp=1,4); e 49% para primeira
série (M = 5,9; dp=1,2) e 50% de acertos para segunda série no caso dos sufixos
(M=6,0; dp=2,4).
A comparação das
médias de acertos por meio de análises paramétricas não foi possível devido à
natureza dos dados. Testes não paramétricos Mann-Whitney foram realizados nos
dados sobre o número de acerto em cada tarefa para cada série. As crianças de
primeira série não tiveram desempenhos estatisticamente diferentes das crianças
de segunda-série (Z = -1,21; p = 0,12 para os prefixos e para os sufixos Z =
-7,4; p = 0,46). Os dados foram então colapsados formando um único grupo. O
resultado análise paramétrica Wilcoxon, para pares relacionados mostrou um
resultado estatisticamente significativo para tipo de morfema (Z = -2,32; p =
0,02), indicando que as crianças acharam mais difícil julgar os pares com
sufixos do que os pares com prefixos.
Discussão
Estudos
interessados em investigar o desenvolvimento da consciência morfológica em
crianças e sua relação com alfabetização, têm apresentado resultados que mostram
que a consciência morfológica pode não ser um conceito unitário. Diferentes
morfemas podem ser adquiridos em diferentes momentos do desenvolvimento. Por
exemplo, a morfologia derivacional parece ser desenvolvida mais tardiamente do
que morfemas flexionais (Casalis & Louis-Alexander, 2000; Deacon &
Bryant, 2005). A estrutura fonológica das palavras também parece ser outro fator
que determina o processamento dos morfemas. A relação morfêmica entre palavras
derivadas ou flexionadas que mantém a transparência fonológica das palavras é
mais facilmente percebida pelas crianças do que quando há mudanças na estrutura
fonológica (Fowler & Liberman, 2005; Carlisle, Katz & Stone,
2001).
Uma possível
explicação para esse fenômeno diz respeito ao modo de armazenamento desses
morfemas no nosso léxico. Sterling (1983) trabalhando numa abordagem da Teoria
do Processamento de Informação argumenta que os morfemas são armazenados como
unidades independentes, no momento que uma palavra morfologicamente complexa é
processada essas unidades são acopladas para formar novas palavras.
Os resultados de
Smith (1980) sugerem que o armazenamento dos morfemas ocorre como proposto por
Sterling (1983). Demonstram que a omissão de letras que correspondem aos
morfemas é mais freqüente do que a omissão da mesma letra quando é parte
integrante da palavra. Smith baseia suas conclusões em estudos que investigaram
o processamento dos morfemas em situações de escrita espontânea. Para explorar
esse fenômeno, no presente estudo, controlamos experimentalmente a relação
morfêmica entre as palavras. Nossa hipótese é a de que quando as raízes das
palavras não sofrem transformações é mais fácil "contruir" as palavras
morfologicamente complexas. Se este é o caso é, as crianças terão mais
facilidade de julgar as palavras quando as raízes das mesmas estão intactas.
Os resultados que
obtivemos confirmam essa hipótese, mostram que as crianças acharam mais fácil
reconhecer a relação morfêmica das palavras quando a raiz estava intacta do que
quando ela sofria transformações. Esses resultados sugerem que os morfemas são
armazenados como unidades independentes, e estão em consonância com os
resultados de estudos já citados realizados no inglês.
Porém, os
resultados desse estudo devem ser analisados com cautela. Dez dos 12 pares de
prefixos os morfemas eram também parte da sílaba. Seria interessante investigar
se os morfemas são melhor reconhecidos quando eles são unidades destacáveis das
palavras, ou seja, quando eles forem uma sílaba independente ("desfazer") ou
quando forem parte da sílaba ("desatar"). Se a característica que permite a
identificação do morfema é manter intacta a raiz das palavras não deveria haver
diferenças na identificação da relação morfêmica nesses dois pares de palavras.
Por outro lado, se características fonológicas das palavras forem a razão
principal para identificação da relação morfêmica, as crianças deveriam achar
mais fácil julgar palavras como "fazer" e "desfazer" do que "desatar" e "atar".
Em termos do
desenvolvimento das habilidades metalingüísticas, se o processamento morfológico
for mediado pelo processamento fonológico, pode-se corroborar a hipótese de
Nunes, Bryant e Bradley (1997) de que a consciência morfológica é um constructo
que se desenvolve mais tardiamente, depois que as habilidades fonológicas estão
consolidadas. É possível que a habilidade de reconhecer os morfemas se
desenvolva a partir da habilidade de se refletir sobre os sons que compõem a
fala. Estudos futuros precisam demonstrar se a habilidade de se refletir sobre
os sons da fala (consciência fonológica) contribui para o conhecimento
morfológico, ou se essas duas habilidades se desenvolvem de forma
independente.
Nunes e Braynt
(2006) relatam o resultado de dez anos de pesquisa sobre a relação entre a
consciência morfológica e a escrita no inglês. Os autores argumentam que o
ensino das relações morfêmicas entre as palavras ajuda a criança no
desenvolvimento da escrita. Contudo, diferentes ortografias podem requerer
diferentes estratégias de escrita (Lehtonen & Bryant, 2005). O português é
uma língua com correspondências letra-som mais regulares que o inglês. Antes de
discutirmos as implicações das pesquisas sobre o processamento morfológico para
o português, precisamos conhecer mais sobre o seu desenvolvimento no contexto
educacional brasileiro. Em particular, a questão levantada nesse estudo sobre a
independência desta contribuição da consciência fonológica
Os resultados dessa
pesquisa levantam assim várias questões que precisam ser respondidas, entre
elas: a idade de aquisição da consciência morfológica, a contribuição da
consciência morfológica para diferentes ortografias, a relação entre
processamento fonológico e morfológico, e as implicações educacionais dos
resultados de pesquisas.
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Recebido em:
março/2007
Revisado em: julho/2007
Aprovado em:
agosto/2007
Sobre a
autora:
* Márcia Elia da Mota é doutora em
Psicologia pela Universidade de Oxford, Inglaterra, docente do Departamento de
Psicologia Universidade Federal de Juiz de Fora.