domingo, 9 de setembro de 2012

Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus - Jornal Opção


Quem deve/pode e quem não deve/pode escrever? Quando falo de direito linguístico, de autorização linguística e de dignidade linguística não estou falando de escrita correta e impecável, do ponto de vista do purismo gramatical brasileiro, inventado pela época da independência, reinventado pela época da proclamação da república e reafirmado sempre até hoje. Estou falando de expressão de sentido que vem da alma e de performatividade discursiva, para além da performatividade do mero ato de fala, de linguagem ou de discurso. Falo de escrita viva, que dá vida e confere dignidade, e que advém da pobreza, da sujeira e do lixo (para além da pobreza, da sujeira e do lixo materiais), porque a alma não conhece classe social nem grau de escolaridade. A alma pode tudo, sempre! Por isso, há tanto empenho em silenciar os gritos das almas excluídas intencionalmente e muito bem planejadamente. 

Vamos refletir sobre isso, dialogando com Euler de França Belém, no Jornal Opção, sobre a escritora Carolina Maria de Jesus e sobre seu significativo Quarto de despejo:

Alguns excertos:

"Lidas as primeiras páginas do diário, Onaga sugeriu: “Isso dá um livro!” Audálio Dantas conta que, “além do diário, havia contos, poesias, até um começo de romance”. Por mais que os textos estivessem repletos de erros de português, com algumas avaliações mal costuradas, havia vida, alma, no trabalho de Carolina de Jesus. O repórter frisa que “estava convencido de que não conseguiria retratar aquele mundo miserável com a mesma força e a mesma verdade contidas naqueles cadernos”. A vida, vista de dentro, sem os adornos dos métodos, era apresentada em toda a sua crueza, numa espécie de levantamento entre o sociológico e o antropológico. Carolina de Jesus lia livros que en­contrava no lixo."

"A repercussão, bombástica, gerou comentários céticos: “Isso é invenção de repórter, pra vender jornal”, “onde já se viu, uma negra semianalfabeta, e ainda por cima favelada, escrevendo desse jeito”. Ao reler o texto que escreveu para apresentar os diários, 54 anos de­pois, Audálio Dantas aponta “excessos de adjetivos, alguma pieguice e imperdoáveis falhas de informação” (não deu o nome dos filhos de Ca­rolina de Jesus)."

"O jornalista hospedou-a no Co­pa­cabana Palace, o hotel mais luxuoso do Rio de Janeiro, e comprou vestidos caros para sua “convidada”. “No Antonio’s, se não me engano, montaram uma impressionante cena de preparação de uma sobremesa flambada em meio a altas chamas. Carolina registraria mais tarde em seu diário: ‘Comi aquela confusão toda e não gostei’”, registra Audálio Dantas."


Esses trechos permitem-nos refletir sobre: 
(i) a prática da escrita como um ato social de poder, entendendo-se poder muito mais do que a imposição de alguns sobre muitos, como a capacidade de vencer a si mesma e superar as limitações e impedimentos impostos historicamente aos mesmos grupos pela estrutura da sociedade.
(ii) escrever é muito mais do que obedecer a regras gramaticais e a esquemas fixos de estruturação e estilo textual.
(iii) a prática etnográfica, por mais bem intencionada e por maior que seja o rigor metodológico (aliás, estou convencida que quanto maior o rigor metodológico, pior o resultado etnográfico), não permite captar a alma em estado de alma viva da vida de quem vive, impossível! 

Reflitamos, pois, galera!!!!!




4 comentários:

  1. Estou lendo agora "como e por que ler" do ilustríssimo Harold Bloom, e penso se existe um "Como e por que escrever"!

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    1. Desenvolva suas ideias, Renata. Harold Bloom é uma excelente leitura. Deve ser apreciada com crítica, claro, de acordo com nossos contextos sociocultural e econômico. Obrigada por participar. Abraço.

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  2. Ao lermos a história de Carolina Maria de Jesus, fica-nos evidente que a linguagem é, sobretudo, uma prática social diretamente relacionada à representação de cultura e imposição de poder.Mulher de pouca escolaridade, negra e pobre, a autora conseguiu através de suas obras, fazer uma denúncia social e política a respeito do cotidiano das favelas de São Paulo.Nesse ponto é interessante observarmos que sua produção literária, apesar de conter vários 'erros' gramaticais (digo 'erros' porque bem sabemos que para a Linguística, esse fenômemo refere-se a um desvio da norma padrão) teve grande reconhecimento literário.Houve críticos que duvidaram da veracidade da autoria e ai, percebemos que o preconceito tem tamanha intensidade na sociedade atual:a crítica às suas obras não se restringe apenas à linguagem, mas também pela posição social do indivíduo escritor, por se tratar de uma mulher, pobre e negra.Será que apenas a elite intelectual é capaz de produzir verdadeiras obras literárias? "É claro que Carolina de Jesus não é uma farsa, dada sua percepção aguda e vívida da vida na favela, mas não é também uma escritora comparável a, digamos, Clarice Lispector, Rachel de Queiroz e Ly­gia Fagundes Teles. Não se pode nem mesmo compará-las. Porque, nas obras de Carolina, por falta de formação cultural e de banco escolar mesmo, não há elaboração, apuro na linguagem."Por que a língua tem a obrigação de ser meticulosamente elaborada, ao passo que não se trata de um 'organismo' inerte,mas sim de uma fato social (como bem disse Durkheim e Saussure, ao tratar da fala)?Nesse contexto, percebemos também que a etnografia enquanto método antropológico, não é capaz de descrever o 'estado de alma' do(s) sujeito(s) analisado(s),já que na história de Carolina vemos que sua escrita é mais que uma simples descrição do cotidiano, mas também um instrumento de representação de sua visão de mundo; de seu estado de alma.. "a alma não conhece classe social nem grau de escolaridade. A alma pode tudo, sempre! Por isso, há tanto empenho em silenciar os gritos das almas excluídas intencionalmente e muito bem planejadamente. "

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  3. "Desconhecia este fato da historia do jornalismo, assim como o livro Quarto de Despejo e os fatos que cercam sua autora. Contudo gostaria de ressaltar o trabalho de um revisor em texto. Grande parte, se nao todos, os grandes autores nao parem um texto pronto e acabado, ha, naquilo que nos chega as maos, o imanestimavel trabalho de um revisor. Se nao fosse ele muitos dos escritores afamados, com nivel de escolaridade alta, vindos da elite, estariam, se conseguissem a facanha de publicar suas ideias, impressoes sobre o mundo e suas experiencias, sendo acusados de embuste pela incapacidade de coordemar ideias e escrever corretamente. Entao, honras especiais aos revisores de textos e ao jornalismo como este que vc, Euler , faz! Parabens pela informacao e por nos fazer repensar o preconceito que limita as chancer de ver beleza alem das fronteiras estabelecidas." Por: Mayra Abreu.

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